Um ovo, dois ovos, três ovos assim…

ovos de pascoa lacta 3

Todo ano é a mesma coisa. Sai de cena o bom velhinho com seu gorro vermelho- incitando nossas crianças a desejar brinquedos e as famílias que Natal sem consumo exagerado não vale a pena -. para entrar o Coelinho. Mas, geralmente entre essas duas datas comemorativas temos o Carnaval que enche não só as vitrines, mas nossas ruas com cor e alegria disseminando cultura popular e alegria. Mas, esse ano algo surpreendente aconteceu… Ovos de chocolate já decoravam prateleiras de supermercado ao redor do país nas quentes férias de janeiro- antecipando a chegada da Páscoa. E por que isso aconteceu? A Páscoa não é uma data fixa de 40 dias depois do Carnaval? O que a trouxe para janeiro? Será que as vendas de fim de ano não renderam bons lucros? Será que as férias escolares foram o motivo? A resposta para o fato será difícil para nós mortais, mas o mercado sabe, com certeza, o exato porquê.

Há tempos a Páscoa deixou de ter um caráter religioso para ser uma época de lucro, principalmente com o público infantil, da mesma forma que já acontece no Natal e no Dia das Crianças. E a cada ano os ovos de Páscoa para esse público estão mais caros e incrementados porque vêm acompanhados de brinquedos maiores e mais atrativos aos olhos da criançada que, muitas vezes, desconhece o real sentido da Páscoa – uma data com significado bem importante para as religiões católica e judaica que remete a renovação e transformação. Sentidos bem distantes do que a mercantilização da data nos oferece nos dias de hoje: o consumo, em excesso, de gordura, açúcar e brindes.

Os túneis de ovos de chocolate nos supermercados eram o anúncio da chegada da Páscoa, mas, hoje, além dos brinquedos que vem com o ovo, as estratégias publicitárias vão além para atrair os olhos de nossos pequenos. Nesta época do ano, comerciais na TV mostram ainda mais brinquedos que são colocados em embalagens de acrílico no formato de ovo para que a criança peça um brinquedo ao invés de um simples chocolate. Sem falar de todos seus personagens favoritos licenciados nas atrativas embalagens dos ovos o que está em total acordo com os dados da pesquisa da Interciense que diz que a publicidade na tv seguida por embalagens e personagens famosos são os três principais fatores de consumo de produtos infantis entre as crianças.

E nesse ano, além de todos esses apelos difíceis de driblar, pelas famílias, nossos conhecidos corredores de ovos ganharam ainda ares de corredores de grandes lojas de brinquedos- setorizados por cores e dividindo os desejos de meninos e meninas em azul e cor de rosa. Estratégia de vendas que vem na contramão de tudo que tem sido discutido sobre diferença de gêneros desde a mais tenra idade. Mas, não é somente pela divisão entre meninos e meninas que os corredores pareciam lojas de brinquedos, mas também pelos tantos brindes que recheiam os ovos– de bonecos licenciados a mini-rádios e gloss labial.

Os brinquedos são, na verdade, objetos simples, como canecas, maletinhas, bonecos pequenos, normalmente feitos de plástico e de pouca durabilidade. Mas, que criança que não vai querer ter mais um super-herói, princesa ou outro personagem favorito em casa? Outra questão importante, apontada por um levantamento do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor) de 2010, é que o uso de personagens famosos tende a encarecer o ovo, o que faz com que os pais gastem mais somente para agradar e não frustrar os desejos dos filhos. Isso, num país desigual como o nosso, causa problemas de orçamento, uma vez que os ovos com brindes são anunciados a crianças de todas as classes sociais. E se compararmos o preço de um chocolate de 150 gramas normal com um de ovo a diferença é grande. Um ovo chega a custar cinco, seis, até sete vezes mais. Então, o brinquedo não é brinde, está sendo vendido junto o que poderia se configurar como venda casada.

Vocês podem e devem estar se perguntando sobre qual o grande problema em presentear as crianças, ocasionalmente, com deliciosos ovos de chocolate. Vou então além dos aspectos filosóficos e éticos. A começar pelo simples fato de que, embora ovos de páscoa sejam considerados produtos “sazonais”, consumidos em época específica do ano, o incentivo ao seu consumo exagerado, pelas crianças, para que colecionem brinquedos, é sem dúvida preocupante em um país com índices cada vez mais alarmantes de obesidade infantil. Segundo dados da Pesquisa de Orçamento Familiar 2008-2009, conduzida pelo IBGE e lançada em dezembro de 2010, 33,5% da população brasileira entre 5 e 9 anos já está com excesso de peso e 14,3%, obesa. Outro, ainda mais alarmante, revela que, pela primeira vez na história, um número crescente de crianças apresenta problemas de coração, de respiração e diabetes tipo 2, todos relacionados à obesidade. .Esses dados bastariam.

Mas, vou além, lembrando que a prática de dirigir publicidade a um público menor de doze anos fere a legislação vigente principalmente depois da promulgação da Resolução 163 do Conanda – Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes- em Abril de 2014 (que, aliás, aniversaria na Páscoa). A resolução jogou luz na legislação vigente que considerada publicidade abusiva nos termos do artigo 37, parágrafo 2º do Código de Defesa do Consumidor (CDC), além de ofender a proteção integral de que são titulares todas as crianças, segundo o artigo 227 de nossa Constituição Federal. Sem esquecermos que a venda necessária e conjugada de produtos, sem que seja oferecida ao consumidor opção de escolha, é também proibida pelo ordenamento jurídico brasileiro, pois se configura o que chamamos de “venda casada”.

Vale destacarmos que a publicação da norma no ano passado foi amplamente divulgada pelos meios de comunicação e alvo de intenso debate entre a sociedade civil e parte do mercado publicitário e anunciante. E ganhou ainda mais notoriedade quando o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep) escolheu a publicidade infantil como tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em Dezembro passado levando mais de 8 milhões de jovens a se debruçar sobre o tema. Dessa forma podemos dizer que 2014 foi, por um lado, simbólico e vitorioso para a defesa dos direitos das crianças no Brasil mas, infelizmente, o que temos observado na prática, principalmente nesse período de Páscoa é a continuação antiética e ilegal do direcionamento de publicidade a um público indefeso – pela fase peculiar de desenvolvimento na qual se encontra.

Sem dúvida não conseguiremos localizar, no tempo ou no espaço, onde e quando perdemos o sentido da Páscoa e de tantas outras comemorações. Mas, certamente, a mercantilização desta festa tem contribuído para outros problemas de nossa sociedade e para que outros sentidos se percam, fazendo-se necessária e urgente uma reflexão sobre quais valores estamos passando às crianças ao comemorar a Páscoa dessa forma. Pensando nisso vale lembrarmos as famílias que em diferentes lugares do mundo a Páscoa é comemorada de formas distintas e não menos doces. Podemos fazer ovos pintados em casa, comprar de quem produz, além de inventar brincadeiras divertidas como caça aos ovos para que a celebração seja mais sustentável, em família e sem excessos.

Mas, além disso, não temos como deixar de clamar para que 2015 seja o ano da fiscalização da resolução do Conanda e que sociedade civil faça sua parte, denunciando as práticas abusivas de publicidade dirigida às crianças. Um bom exemplo foi o do MIlC – Movimento Infância Livre de Consumismo -na recente campanha de Páscoa em que pede boicote da compra desses produtos estampados nos túneis e também que os consumidores aumentem as reclamações com as empresas procurando o Procon de sua cidade ou outros órgãos competentes como o Idec, Ministério Público Federal e o Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana. Nessa Páscoa, quando a Resolução do Conanda faz aniversário de 1 ano, pode ser um bom momento para que um novo paradigma na efetivação dos direitos das crianças seja, de fato, alcançado e devidamente comemorado por todos nós. Que venha um ano mais doce para nossas crianças.

Deixe um comentário